Personagem da vida brasileira, Doutor Sócrates, como era conhecido no mundo futebolístico por ter concluído o curso de medicina, ou apenas Magrão, culpa da silhueta esquálida (eram 85 quilos distribuídos por mais de 1,90 metros de altura), foi destaque no Botafogo de Ribeiro Preto, na segunda metade da década de 70, o que fez com que o Corinthians se interessasse pelo seu passe.
Nesse mesmo Botafogo, Magro já mostrava que a inteligência era a melhor saída para as dificuldades. Por conta da necessidade da agilidade para as jogadas rápidas, ele driblou a eventual desvantagem atribuída pela altura e passou a efetuar passes de primeira utilizando-se do toque de calcanhar, que se tornou uma espécie de assinatura.
Tive a felicidade de ver e até de conviver com essa figura ímpar, autêntica, de personalidade marcante, avessa ao beija-mão tão comum no mundo da bola. Por questões de princípios não era raro que ele recusasse até receber homenagem vinda de certos dirigentes. Seu talento como atleta correu o globo. Marcou posição na inesquecível seleção canarinha que encantou (mas não venceu) a Copa do Mundo de 82, na Espanha. Recentemente a Rede Globo exibiu um especial sobre essa campanha, e numa das entrevistas um cidadão espanhol chorou ao falar de Sócrates, demonstrando que a linguagem do craque era mesmo universal.
Num dos encontros inesquecíveis que a vida me proporcionou, estivemos juntos no restaurante do Wilsinho, o Vila Tavola, no Bexiga, durante a concentração da Ala da Memória Corinthiana para o carnaval de 2005, quando a Gaviões da Fiel estava no Grupo de Acesso.
Outra passagem foi a homenagem que fizemos a ele na quadra da agremiação alvinegra, ocasião em que ele chegou por volta das 21 horas e só foi embora no dia seguinte. Passamos a noite lembrando as várias histórias da torcida, os jogos e principalmente cantando pérolas da música nacional. E quando ele finalmente foi embora, resolveu dar carona a um gavião que morava no extremo leste da cidade. Lá chegando deixou o amigo onde ele havia pedido. E qual não foi a surpresa do amigo quando saiu à rua, por volta das 11 horas, e encontrou o Dr. conversando animadamente com um cidadão que jamais havia visto.
Magro era daquelas pessoas especiais, que até poderia ter o rei na barriga, mas que preferiu ser como a maioria do povão é: simples. Tenho na memória inúmeros lances protagonizados por ele e que talvez rendesse um pequeno livro. Mas se tivesse que escolher apenas um, ficaria com o calcanhar que ele deu contra o Santos, na final do primeiro turno do campeonato de 1978, no Morumbi, que terminou numa penalidade a favor do Corinthians. Nessa jogada ele recebeu a bola no lado esquerdo no campo de ataque, carregou por dentro em direção à meia-lua e quando todos imaginavam que pudesse soltar uma bomba pra cima do goleiro adversário, de calcanhar ele deixou Palhinha na cara do gol. A jogada acabou em pênalti cobrado por Zé Maria e defendido pelo goleiro Vítor. Ao Timão só a vitória interessava e ela veio no segundo tempo com um gol chorado de Palhinha que deu ao Corinthians o título de campeão do primeiro turno, a Taça Cidade de São Paulo.
Magrão já é eterno na mente daqueles que o conheceram, daqueles que assistem aos vídeos com imagens suas atuando como atleta ou comentarista, ou ainda, como ativista político que não se furtou em lutar contra a ditadura. Confesso que nunca fui de bajular jogadores. Como membro ativo da torcida organizada sempre mantive distância para que pudesse cobrá-los quando fosse necessário. Mas do Sócrates até pôster mandei enquadrar, uma foto de corpo inteiro, publicada pela extinta Gazeta Esportiva.
Posso até dizer que Sócrates é um dos responsáveis pela formação do Comitê de Preservação da Memória Corinthiana (CPMC). No final da década de 90 conheci formandos de um curso de jornalismo que trabalhavam na feitura da biografia do ídolo – e eu fui um dos entrevistados. Os alunos eram os hoje jornalistas, Patricia Favalle, Adriana Brito, Anita Rodrigues e Fabiano Souza. Anos mais tarde, quando decidi fazer um evento comemorativo dos 25 anos da conquista do título paulista de 1977, retomei o contato com alguns desses profissionais, que prontamente aceitaram o convite e ajudaram a fundar o CPMC.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira agora é imortalizado em forma de busto na praça da Liberdade, dentro do Parque São Jorge, justamente onde um dia existiu a “casinha branca”, bunker que abrigava o já falecido Nesi Curi, tido como turrão e até autócrata da história alvinegra...
Convoco aos que tem espírito de liberdade e de humildade a estarem no clube neste sábado, a partir das 10 horas da manhã para acompanhar a cerimônia.
Final do primeiro turno de 1978: Polícia prende surdo e São Jorge. Sócrates protagoniza um dos lances mais lindo que eu vi das arquibancadas do Morumbi.
Ernesto Teixeira – A voz da Fiel
Torcedor corinthiano; sócio, intérprete e compositor da Gaviões (8.005); sócio do Corinthians (305.216); idealizador do Comitê de Preservação da Memória Corinthiana (CPMC); colaborador da Rádio Coringão.
Formado em Gestão Desportiva e de Lazer pela Faculdade Drummond